Para que tudo o que vem a seguir fique claro “ab initio”,
não conheço o estudo da Coimbra Business School e da Universidade de Málaga,
que segundo um artigo do Público da passada 5ª feira, numa entrevista à investigadora
Clara Henriques “revela que trabalhadores a tempo parcial têm mais
disponibilidade para aumentar a família” (desculpem-me a brejeirice : só se for
por ter mais tempo para a actividade sexual porque no que toca a rendimentos,
ter um trabalho parcial em Portugal é nitidamente insuficiente para aumentar a
família)* ou que, segundo a investigadora, “o teletrabalho pode contribuir para
o aumento da natalidade”, ou ainda, e continuo a citar a investigadora, “o
teletrabalho permite gerir o horário. Por exemplo, hoje posso estar o dia todo
com o meu filho e compenso amanhã ou no fim de semana”. Confesso que o artigo
não menciona quantos dos mais 19 mil trabalhadores oriundos de 34 países são
portugueses nem tão pouco a que sectores pertencem. O que sei de experiência
feita em mais de 40 anos de terreno no movimento sindical é que, infelizmente,
a realidade era bem diferente e do que nos é dado saber as condições em que a
maior parte do teletrabalho se desenvolve hoje em dia, fruto das condições
muito específicas da pandemia, não encaixa na visão idílica que nos é
apresentada.
* Estamo-nos a referir a Portugal (total em 2019 - 10,3%) e
não, por exemplo, à Holanda (51.2% com grande expressão para as mulheres –
75,5%). Em Portugal o trabalho a tempo
parcial (TTP) está longe de se ter “democratizado”, isto é:
1 – Tendo em conta os baixos salários praticados, na maior
parte das vezes não resulta de uma opção mas sim do recurso possível;
2 – A maioria é composta pelos chamados trabalhadores
indiferenciados. É paradoxal, mas é raro um quadro superior de uma empresa
optar por um TTP, embora em termos
salariais o pudesse fazer. Na cultura empresarial “não fica bem”!
3 – A larga maioria são mulheres (Portugal H 8,2%; M 12,6%
- Pordata 2019)
Pelo contrário. Os relatos que nos chegam revelam abusos
continuados de horários de trabalho ilegalmente prolongados, de conflitos
gerados pela falta de responsabilização das entidades patronais quanto a
equipamentos e custos, pela reiterada violação do direito a desligar, pela
intolerável intromissão na esfera
privada. Conforme revelou muito recentemente a Ministra do Trabalho, Ana Mendes
Godinho, 82% dos beneficiários do apoio aos pais em teletrabalho, em 2020,
foram mulheres. Portanto, diria com bastante certeza, que a esmagadora maioria
dos/as trabalhadores/as em teletrabalho em Portugal não tem essa liberdade de
escolher o horário que lhe dá mais jeito ou de optar por tirar um dia de férias
para passar com os filhos ou visitar os pais, por sua única iniciativa sem
autorização da empresa e que sim, as mulheres são as mais prejudicadas pelo
COVID-19. Pelo menos até agora.
A investigadora prossegue, acrescentando, e cito “que o
teletrabalho, que aumentou por causa da pandemia, pode ter o aspecto positivo
de poder vir a alterar o paradigma e abrir as portas a uma maior
flexibilização”. Refere também que “a mudança nas condições de trabalho que a
pandemia veio provocar poderá ter duas consequências benéficas: aumentar o
número de filhos que cada família decide ter; e aumentar a produtividade de
cada colaborador”, defendendo esta hipótese “por permitir que estes poupem
imensas horas em deslocações, reduzam o stress e tenham uma maior satisfação
global com o emprego”.
Quanto ao aumento da produtividade não ponho em causa este
aspecto conseguido sobretudo, tendo em consideração a realidade, à custa da
violação do horário de trabalho. Mas, por isso mesmo não me parece uma situação
tão basicamente defensável, como já tive ocasião de enunciar. Choca-me
particularmente que à pala de um défice comprovado do índice demográfico em
Portugal (1,41 filhos por mulher em idade fértil, quando a média europeia é de
2,1, segundo o já citado estudo), reconhecendo este que existe sexismo na vida
familiar, que as mulheres trabalham mais em casa do que os homens, que estão
mais disponíveis para sacrificar a carreira, e que continuam a ser
discriminadas no emprego, a dita conciliação entre a vida familiar e a
profissional se faça à custa das mulheres. Sempre defendi que a conciliação
devia passar sobretudo pelos homens. Eles é que precisam de aprender a
conciliar. As mulheres já conciliam as mais diversas situações. São
profissionais, mães, cuidadoras, militam em várias causas e diferentes
organizações. Por favor, não as tornem também as principais responsáveis pelos
fracos índices demográficos, tentando agora transformá-las em “parideiras”.
Porque se a Drª Carla Henriques refere
que “antes da pandemia, os profissionais indicavam ser muito difícil
criar uma harmonia entre o trabalho e a vida pessoal, uma vez que chegavam a casa esgotados com o ritmo e o stress da
rotina dos empregos presenciais e das pendulações casa-trabalho”, acrescentando
que o facto de se poder progredir na carreira seria impeditivo de ter filhos ou
de limitar o seu número a apenas um, tendo em conta que reconhece que as
mulheres estão mais disponíveis para sacrificar a carreira, levar-me-ia a
concluir que são principalmente os homens que, por uma razão ou outra, obstam ao aumento da família. O que também
não me parece real. O maior obstáculo ao aumento do número de filhos são aos
baixos salários, a precariedade laboral, a falta de estruturas de apoio à
família, uma habitação condigna e a estagnação da carreira profissional das
mulheres numa sociedade que teima não reconhecer o valor da maternidade. Quanto
ao estado de esgotamento ou de stress de um ou de uma profissional quando chega
a casa, parece-me que estaremos todos de acordo, incluindo a investigadora, que
representando as tarefas familiares um peso muito maior para as mulheres, como
é afirmado, não se vê como a diluição existente
entre a esfera familiar e a profissional, seria vantajosa no caso das
mulheres, dando-lhes, entre pôr o assado no forno e o teletrabalho, o
necessário estímulo sexual para lhe apetecer aumentar a família! Acresce que as
referências feitas no estudo são, do meu ponto de vista, empobrecedoras da
perspectiva da felicidade de um casal, reportando-se o artigo apenas ao
envelhecimento da população, à não renovação das gerações, ao aumento do número
de filhos e nunca à necessidade de um relacionamento equilibrado e feliz entre
um homem e uma mulher que trabalham e se amam.
Sejamos claros, o teletrabalho não é a solução miraculosa
para todas as situações e, desculpem a minha incredulidade, tão pouco para
contribuir sem mais nem quê para o crescimento do número de filhos das famílias
portuguesas. Compreende-se o aumento
exponencial desta modalidade de trabalho nestes tempos angustiantes de pandemia
mas é cada vez mais necessário adoptar regras e criar legislação adequada,
porque o que existe não está a ser suficiente.
Preocupa-me, sobretudo, que de repente, os responsáveis políticos
pareçam que descobriram a pólvora. A esse respeito convém lembrar que desde
1996 existe uma convenção da OIT (Organização Internacional do Trabalho) – a
177 – sobre o trabalho a domicílio e a promoção da igualdade de tratamento
entre os trabalhadores a domicilio e os trabalhadores por conta de outrem,
apenas ratificada por 10 estados entre os membros da OIT de uma lista da qual
Portugal não faz parte. E já lá vão 25 anos!
É, por isso, importante divulgar o que o site da OIT tem
para nos oferecer, desde Janeiro deste ano. Sem pretender ser exaustiva,
retirei algumas passagens que me parecem matéria de reflexão, principalmente
para os entusiastas das “modas” no sector do trabalho, perigosas defendo eu,
sem que se atentem criteriosamente em todos os dados disponíveis para se
alcançar uma solução equilibrada.
(Os trabalhadores a domicílio) “... tendem a estar em uma situação pior do que aqueles que trabalham fora de casa, mesmo em
profissões mais qualificadas. Trabalhadores em domicílio ganham em média 13%
menos no Reino Unido; 22% menos nos Estados Unidos da América; 25% menos na
África do Sul e cerca de 50% na Argentina, na Índia e no México. Além disso, os
trabalhadores em domicílio também enfrentam maiores riscos para a saúde e
segurança e têm menos acesso à formação do que outros trabalhadores, o que é
prejudicial para as suas perspectivas de carreira.”
“O relatório intitulado em inglês “Working from Home: From
invisibility to decent work ” (“O trabalho em domicílio: da invisibilidade ao trabalho
decente”) mostra que as pessoas que trabalham em casa não têm o mesmo nível de
proteção social que os outros trabalhadores. Também é menos provável que sejam
sindicalizados ou cobertos por um acordo coletivo”
“No que diz respeito a
pessoas em condição de teletrabalho, o relatório apela aos legisladores para
que implementem medidas específicas para mitigar os riscos psicossociais e
introduzam o “direito à desconexão” para garantir que os limites entre o
trabalho e a vida privada sejam respeitados.”
Finalmente, convém também lembrar que o Código de Trabalho
(2009) já tem mais de 10 anos e, tendo em conta a situação actual, deveria ser
revisitado, pelo menos no que toca à regulamentação do teletrabalho. É por isso
urgente que o governo em conjunto com os parceiros sociais, com serenidade e
longe de expectáveis pressões, meta mãos à obra para que os trabalhadores/as em
teletrabalho não acabem injustamente protagonistas de modas “moderninhas” de
baixíssima qualidade.
Wanda Guimarães
Antiga vice-presidente da Comissão de Trabalho e Segurança
Social da AR
Antiga dirigente sindical