domingo, 9 de maio de 2021

UMA ANÁLISE DESPRETENSIOSA SOBRE O PROJECTO DO PS - “Procede à regulamentação do teletrabalho”

 Não vou analisar os benefícios ou os malefícios do teletrabalho (seria muito mais longo), mas não acho admissível e acho até um bocado ridículo, não fosse perigoso, que de repente um conjunto informado de pessoas entenda que encontrou a solução milagrosa para os problemas laborais, tentando transformar todo o trabalho subordinado em teletrabalho, acrescentando precariedade e insegurança aos elevados níveis, de que lamentavelmente já dispomos em Portugal. Congratulo-me, por isso,  que o Grupo Parlamentar do Partido Socialista tenha decidido apresentar uma iniciativa legislativa sobre a matéria mas, infelizmente, o seu articulado está longe de poder ser considerado satisfatório e/ou adequado para fazer face aos desafios com os quais os trabalhadores/as em teletrabalho são diariamente confrontados.

Não vou tecer considerações sobre os perigos que, sem rebuço, patrões já anunciam como “coisa normal”. Mas compete-me enquanto cidadã,  antiga sindicalista, e acima de tudo socialista, tentar contribuir para uma solução mais justa e eficaz.

Muito poderia, infelizmente, comentar mas limitar-me-ei à análise dos pontos que considero mais negativos:

 1- Ao não incluir este diploma no Código do Trabalho os socialistas serão os responsáveis por abrir a porta à disseminação de legislação avulsa, dificultando o acesso das pessoas à informação como aconteceu durante toda a ditadura e mesmo durante 29 anos, em democracia,  até à primeira compilação das leis do trabalho em 2003. Mais, ao optarem politicamente pela sua exclusão, enfraquecem e subalternizam o seu conteúdo prejudicando aqueles que pretendem proteger.

 2 - O conteúdo passa a basear-se, fundamentalmente e nas questões mais sensíveis, numa relação solitária entre patrão e trabalhador, com uma boa parte da sua implementação remetida para a exposição de motivos (nem sequer existe um novo título, como por exemplo, regulamentação, a demarcar  devidamente o novo capítulo) e excluída, por conseguinte do articulado, isto é, sem qualquer valor jurídico.

 3 – Todos as despesas resultantes da realização do teletrabalho não são claramente da responsabilidade do empregador que se limita, não a pagar o acréscimo comprovado de custos, mas apenas a “compensar” o trabalhador Compensar como? O trabalhador tem custos acrescidos e o patrão pode compensá-lo em géneros, por exemplo? Não concordo com uma definição dos montantes que deve ser encontrada em convenção colectiva do sector ou da empresa,  mas o princípio tem que ser acautelado.

 4 – Põe-se em causa, por exemplo, o pagamento do subsídio de almoço quando um dos princípios alienáveis é o da igualdade de tratamento entre trabalhadores da empresa e trabalhadores em teletrabalho. Por favor, consultem o Code du Travail e o ANI (Accord National Interprofessionnel). Não é preciso inventar nada. O exemplo francês é uma boa base de trabalho.

 5 – A este propósito é francamente negativo que um trabalhador em teletrabalho só tenha que ir, obrigatoriamente, à empresa de dois em dois meses quando um dos princípios basilares de desenvolvimento profissional  e pessoal é, no mínimo a alternância, entre períodos curtos presenciais e em teletrabalho.

 6 – Inimaginável é o conteúdo do artigo “actividades proibidas”, abrindo a porta a actividades que nem os patrões  definem como teletrabalho, permitindo o manuseamento de substâncias perigosas desde que “em instalações certificadas para o efeito”! Lamentamos não estar num qualquer país nórdico mas conhecendo a realidade portuguesa, a falta de inspecções rigorosas, a falta de profissionais para as realizarem e, por vezes, a falta de vontade para multar os prevaricadores, ou para se atender em tempo útil as múltiplas queixas, é uma enorme irresponsabilidade cujos resultados podem ser mesmo trágicos.

 7 – O Direito de desligar não deve ser apenas dos trabalhadores em teletrabalho. Deve ser objecto de um diploma autónomo. Aliás, este assunto foi discutido na anterior legislatura e a posição do Partido Socialista era a de que se legislasse para o conjunto dos trabalhadores/as. Não faz qualquer sentido distinguir uma determinada categoria de trabalhadores quando existem abusos em inúmeros sectores, como, aliás,  é reconhecido.  

 8 – Para culminar: o artigo sobre a retribuição, quando preconiza que a retribuição possa ser total ou parcialmente determinada em função dos resultados da actividade ou do grau de realização de objectivos previamente acordados entre o trabalhador e o empregador. Isto é, num acordo a dois, longe da necessária protecção do trabalhador que sozinho tem de “negociar” com o patrão. E não basta consagrar que no mínimo o trabalhador tem direito a uma retribuição “equivalente” (porque não igual?) à que auferiria em regime presencial.

 Não vale a pena, mais tarde, ficarmos todos (hipocritamente) muito tristes com os resultados cada vez mais débeis da negociação colectiva nem fingirmos que a pretendemos reforçar. A manter-se este ponto, tenhamos ao menos a coragem de o assumir como mais uma machadada na negociação colectiva.

 Resta a esperança que, depois do debate em plenário da AR na passada 4ª feira, os partidos com iniciativas neste campo (praticamente todos) tenham a lucidez e, sobretudo a vontade política, PS inclusive,  para introduzirem as mais do que necessárias alterações e proporcionarem aos trabalhadores/as em teletrabalho as condições de segurança e dignidade de que são merecedores.

 Wanda Guimarães

 

 



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